terça-feira, 13 de novembro de 2012

Veneza

Era delicada ou cruel. Umas vezes delicada, outras cruel. Como uma pinça nas sobrancelhas de um homem. As palavras que usava, essas, não lhe pertenciam. Já lá estavam, com as montanhas, no início dos tempos. As palavras que usava, essas, eram facas e setas e pedras e lixo agudo frio que lançava em trezentos e sessenta graus de direcções. Ferindo, mutilando, matando, conquistando, convencendo, derretendo corpos e vidas. No fim, delicada e cruel, vendia o rosto para poder comprar uma máscara.

sábado, 13 de outubro de 2012

As aves mensageiras

Este espaço, antes de se decidir como "A Doença do Século", esteve para se intitular uma série de outras coisas, sendo uma delas essa mesmo: "Uma Série de Outras Coisas". Outro dos títulos possíveis abordava, de forma menos séria do que a seriedade que realmente lhe dou, um assunto polémico: o fim do mundo (o título em causa era, na altura, "O Mundo Acabou Faz Tempo").
Há, como sabem, um fenómeno anual que junta milhares de aves em regresso do período de migração. Nesse momento de regresso, e geralmente sobre um manto de água (que pode ser um rio, um lago, um mar) as aves sincronizam o seu vôo, dando a ilusão de um imenso véu negro que paira no céu e se molda consoante a vontade do vento. A causa real desse fenómeno foi explicada há vários anos. Nenhuma das aves que constituem aquele manto quer ser a primeira a tocar na água em busca de comida, com receio de elas próprias se tornarem alimento de animais superiores. Assim, esperam que a primeira ave se aventure à água e dite as suas probabilidades de sobrevivência.
O homem, burro e trágico, durante anos acreditou que este fenómeno era um pronúncio do fim do mundo e que as aves eram as mensageiras da desgraça. Durante anos, o dia deste reencontro de aves depois do período de migração foi um dia temido.
O homem, felizmente, é um ser que melhora. Os anos foram correndo, os falsos pronúncios também, e o mundo sempre em pé. Por isso, o homem deixou de acreditar nas aves mensageiras e deixou de temer o fim do mundo naquele fenómeno (passou, porém, a temê-lo noutros). Também eu, com os anos mas sobretudo com a idade, deixei de temer o fim do mundo na mudança de século, o fim do mundo que se seguia a 3 dias de noite constante, o fim do mundo com fogo que caía do céu, o fim do mundo escondido no terceiro segredo de Fátima e todos os fins do mundo do mundo e da vida. Sobretudo, porque a vida ensina que qualquer maneira de morrer é melhor do que morrer sozinho.

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Chuva

Um rio inteiro a pedir chuva não é louco. Sente-se só.

Vertical

Um homem não escolhe a bebida que pede. Antes, a bebida escolhe o homem e este só cumpre os minutos que se seguem. Igual com as mulheres. Um homem não escolhe a mulher. A mulher escolhe o homem e este só cumpre os anos que se seguem. Poderia continuar. A bebida, a mulher, as flores, o carro, a carreira, o canal na televisão, a equipa de futebol, a camisa. O homem não escolhe porque o homem não nasceu com gosto. Dá-se ao que o convida. O homem, ao contrário da mulher, é grato. Por isso, aceita o convite e lança-se ao minutos e aos anos. Depois do minuto e depois dos anos, o homem, todo o homem, faz o que lhe está traçado e enfrenta a tragédia com a nobreza e a verticalidade que lhe é reconhecida: bebe. Todos precisam de beber para começarem a esquecer-se uns dos outros.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

O pombo e a andorinha

Um pombo e uma andorinha. Um pombo e uma andorinha: seriam os protagonistas da mais improvável história de amor, não fossem, na realidade, os protagonistas de uma bela e - como verá o leitor em breve - trágica história de amor. Era um pombo com doenças de pombo. Era uma andorinha com voos de andorinha. Conheceram-se por acaso, entre bebidas e amigos em comum. A andorinha perdera o mar fazia meses. O pombo perdera uma perna de pombo fazia meses. Ninguém sabe quanto tempo duram os pombos ou as andorinhas. Bem, na verdade, há quem saiba; mas prefiramos acreditar que não se conhece a duração da vida dos pombos e das andorinhas. O pombo gostava das batatas fritas perdidas nos pacotes de batatas fritas que sujavam a praça. A andorinha gostava de filosofia. O mundo gosta de pombos e andorinhas, mas o mundo nunca estará preparado para conhecer uma história de amor entre um pombo e uma andorinha. Mesmo assim, um dia, começou uma história de amor entre um pombo e uma andorinha. O mundo teve de terminar nesse exacto dia. Foi uma pena, porque o mundo acabaria por gostar da história e a história acabaria por se adaptar ao mundo. Mas acreditemos na força do amor e acreditemos que a história precede o mundo. A bem da verdade, e mesmo sem mundo, o pombo e a andorinha amaram-se para lá do mundo, no céu. Não, não é uma metáfora. Amaram-se no céu, voando constantemente, sem chão onde poisar, aguentando com as asas o seu amor. Infelizmente, os pombos e as andorinhas são espécies frágeis, como os homens ou os leões, e nem todo o amor do céu lhes deu força nas asas que aguentasse o tempo. Cansaram-se das asas e cansou-se o amor. Como o amor do mundo. Como o amor dos homens ou dos leões. Como o amor. 

domingo, 27 de março de 2011

O Douro já o sabe

O que é interessante é que a Primavera também é o céu acizentado, a chuva fiél e a estrada molhada, não concordas? Íamos os dois sob o céu acizentado, rasgando a chuva fiél sobre a estrada molhada e tu com vontade de urinar e eu com vontade de urinar por solidariedade, primeiro, e por desespero, depois. Mas era Domingo, como da outra vez, e estávamos em passeio como todos ao Domingo, tu de fato de treino, eu de ganga, a cantar a playlist do rádio e a conspirar as vidas dos outros, como todos ao Domingo; por isso era vontade de mijar, ai que vontade de mijar, mijar o mundo todo. Mijámos na praia. Eu de pila em riste ao rio. Tu de cócaras de gozo ao rio. E o rio a beber o nosso mijo e a crescer crescer crescer para nós, cada vez mais largo, cada vez mais longo, mais nacional, continental, universal. O meu mijo e o teu mijo no rio, a fundirem-se tranquilos antes das calças para cima e a viagem de regresso, não concordas?

segunda-feira, 21 de março de 2011

Um suspiro muito grande

Há um dia muito bonito a lançar todas as semanas. Há, inclusivé, um poema muito bonito sobre esse dia. Chama-se "Domingo" e começa com um suspiro, como começam todas as semanas. Muitas pessoas nasceram no Domingo e muitas pessoas morreram no Domingo. Entre todas essas, haverá algumas que nasceram e morreram no Domingo - não o mesmo Domingo, um Domingo diferente, qualquer, mas um Domingo sempre bonito a lançar a semana. Ao Domingo há eucaristias dentro das igrejas e cortejos de carros impecáveis a velocidades medidas. Há futebol nos rádios e golos prolongados nas vozes dos relatores, há ondas de mar que batem nas costas dos casado e coisas. Ao Domingo há um sorriso no sol e nuvens de azul, como o desenho de uma criança.

segunda-feira, 14 de março de 2011

O bem e o mal.

Discutíamos a bondade e a maldade no Homem. Ou girávamos em Rousseau num cortejo de filosofia gratuita, como quiseres. Que era bom, que era mau. Que nasce bom, que nasce mau. Que se mede a maldade, que é tudo igual, que é tudo diferente. No fim, algumas coisas: tu, meu amor, continuarás com a mesma ideia. Prevalecerá a bondade e a maldade dentro de ti, como em todos, e o coração se distinguirá, qualificando aquilo que és e que os outros são para ti. Eu, meu amor, continuarei com a mesma ideia. Prevalecerá a bondade e a maldade dentro de mim, como em todos, e só no meu pensamento, como no de todos, se revelarão autências e fiéis. Numa coisa, pelo menos, e ninguém o negará, estamos de acordo. Que a bondade e a maldade quando deitadas, as minhas e as tuas, que a bondade e a maldade quando deitadas, dizia eu, sob os lençois de Inverno numa qualquer cama do mundo, trocando hálitos entre conversas ao ritmo dos mimos nas pernas, inventado posições de encaixe e beijos novos, a bondade e a maldade, meu amor, não interessam um caralho.  

sexta-feira, 11 de março de 2011

A mãe

Havia de visitar a mãe. Havia tempo que não visitava a mãe. Lembrava-se com dificuldade, aliás, da cara da mãe. Era uma cara, se não lhe falhava a memória, bem curiosa. Tinha tatuagens de fogo nas bochechas e dentição incisiva dentro da boca. Quando furiosa, aqueciam as bochechas e cresciam os dentes e rompiam a boca. O cabelo, lá em cima, não escorria nem dançava. Era teso, seco e baço. Era, antes, uma malha de rede que lhe tapava a careca e que despia todas as noites. Como despiria a roupa se tivesse corpo. Mas a mãe não tinha corpo, era só cara com aquilo que disse, se bem me entendem. Era mais ou menos assim a cara da mãe e mãe em geral. Havia de visitar a mãe, dizia eu antes de mais. Mas haveria sempre, graças a Deus, algo mais premente a fazer antes disso.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Promessa

Ele, um dia, faria o tempo voltar atrás. Aos tempos em que foram felizes. E fodia tudo outra vez.

Inolvidáveis (V)

Violante Placido

Reza

Entra, e livre e orgulhosa, sê a dona da minha casa. Descasca as minhas batatas, mata o meu mais saudável cordeiro e prepara a refeição de Domingo. Enche-me a banheira, lava-te nela sempre que quiseres, e perfuma o teu corpo a nossa cama todos os dias. Pare os meus filhos, chama-lhe teus filhos, educa-os e educa-me um orgulho paternal. Reza. Pede a Deus por mim e por ti. Poupa o dinheiro que te dou. Gasta apenas o essencial. Estima-me os sapatos. Vinca-me as calças. Colecciona moedas gordas que nos pagarão férias na praia. Muda o mês no calendário, marca os dias importantes, conta-me as rugas. Leva-me ao médico. Recorda os meus exames. Muda os lençóis da cama e proíbe-me o açúcar no leite. Arranja o cabelo ao sábado, alisa o corpo, pinta os lábios. Abre as pernas, finge que gostas, diz-me que é bom. Entrelaça o teu braço no meu, endireita as costas, passeia-me na praça. Pergunta-me pelo Benfica. Muda a cor aos cortinados, não deixes morrer as plantas. Deixa-me ir primeiro, prepara-me para o chão. Certifica-te que já cá não estou, que não sai ar da minha boca, que os meus olhos imóveis. Enterra-me fundo, ao lado dos meus pais. Fica por cá mais uns tempos. Apruma o meu jazigo com uma flor bonita, uma vez por semana, meu amor. 

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Um poema pós-moderno

Ah!
Caralho,
queimei-me.

A puta da cevada
assim quente
não se bebe.

Vou deixar arrefecer.

Já não deve
estar quente.
Vamos ver.

Ah!
Caralho,
queimei-me.

A puta da cevada
quer matar-me.

A culpa é das tensões
que me proíbem
o café.

O meu coração
é fraco
e falta açucar
que arrefeça
a vida e as merdas.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

O amor é geográfico

Era qualquer coisa para o meio-dia na Rua Passos Manuel. A Joana corria e fugia do sol e eu atrás dela. Descansámos os corpos nas escadas do Coliseu e ela abriu a garrafa de água para dar dois valentes tragos. Eu fixei tanto o olhar nos seus lábios enormes que me desfocaram as vistas e se me escapou um "tu eras a solução". Outra vez, em Coimbra, procurava o carro numa das ruas que circundam a universidade quando me ultrapassou, em passo largo, uma égua loira. Era linda e grande. Tinha pernas lindas e grandes. Ia ao telemóvel e falava estrangeiro. Não haveria problema para nós porque eu também sei falar estrangeiro. Lembro-me de pensar o quanto gostaria de jantar com ela. Não chegámos a jantar mas não deixei de jantar nesse dia em particular e, habitualmente, nos outros em geral. Numa outra vez, e novamente no Porto, conheci uma mulher que gostava de Joanne Harris e dizia aquilo como se eu não conhecesse Joanne Harris e, por isso, ela teria legitimidade para me informar acerca da alimentação sempre presente nos livros de Joanne Harris. Nunca lhe disse que conhecia e, por sinal, odiava Joanne Harris. Que era literatura barata de cordel, uma fórmula fácil para leitoras fáceis e que escritoras como a Joanne Harris deveriam, afinal, morrer violentamente. Em todo o caso, e por breves momentos, estive perdidamente apaixonado por aquela mulher.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Por exemplo (VI)

Os gatos, por exemplo, que Deus os perdoe.

Inolvidáveis (III)

Sílvia Alberto

Jane Birkin

Janis Joplin

 Manoela Sawitzki

Megan Fox

Do Outono e outras coisas

Estávamos todos a discutir o amor e isto e aquilo. Que o amor é um espaço vazio, que metemos outra pessoa lá dentro só para preencher o vazio, que o amor justifica o sofrimento, que o amor não precisa de ninguém, nós é que precisamos dele, e isto e aquilo. Estávamos todos a discutir a vida e isto e aquilo. Que a vida é uma caixa, que a vida dura para sempre, que a vida é o que acontece entre dois cigarros e isto e aquilo. Estávamos todos a discutir a democracia e isto e aquilo. Que o teu voto não conta, que o presidente vai nú, que o Estado é de direito ou é só flanqueador e isto e aquilo. Estávamos todos a discutir a traição e isto e aquilo. Que é animal, natural, cordial, que adoramos mulheres com um belo par de beleza interior, que trair é iniciar uma relação melhor, que o sexo ocasional é sempre à primeira vista, que a mulher dos sonhos nunca nos acorda e isto e aquilo. Estávamos todos a discutir isto e aquilo enquanto, lá fora, as castanhas espreitavam dos ouriços que o Outono roubou das árvores.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Mas não morreu

Ele gostava de mulheres que fumam. Também por isso, de manhã, rasgou os pulsos. Primeiro o direito, com a lâmina de barbear na mão esquerda. Depois o esquerdo, com a lâmina de barbear na mão direita. Doeu muito mas não morreu. Ainda de manhã, atou o cabo da televisão à estrutura do polibã, pendurou-se pelo pescoço e saltou da pilha de livros que o elevara. Doeu muito mas não morreu. Depois de almoço, saltou da ponte rumo ao rio. Doeu muito mas não morreu. Pela tarde, apontou a arma ao queixo e disparou. Presume-se que tenha calculado mal e, apesar de doer muito, não morreu. Ao final da tarde, bebeu hidróxido de potássio e jura que pensou ser assim. Lamentavelmente, doeu muito mas não morreu. À noite, desistiu. Doeu muito. 

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

domingo, 31 de outubro de 2010

Por exemplo (V)

O tempo, esse falso lento, que Deus o perdoe.

Cabeça

Antes de regressar, perguntou se podia tocar as mãos dela. Para quê, mas são horríveis e isto e aquilo mas tocou. Quando tocou, porém, perdeu a cabeça. A cabeça caiu-lhe do corpo e bateu com estrondo no chão da sala, rolando atabalhoada até à base do sofá.

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Uma estrada no meio da rua

E há uma estrada no meio da rua. Uma estrada que nunca mais acaba numa rua que, sem surpresa, não vai longe. O que se sabe é que a rua não vai longe e a estrada nunca mais acaba. Há moradias com cancelas, jardins cuidados, cães de família à solta, carros de família aparcados, caixas de correio disponíveis, tartes de maçã à janela, cortinados floridos, longas mesas de jantar nas salas-de-estar, camas de casal nos quartos, andorinhas nos telhados e gatos nos passeios. Há famílias inteiras, com tudo a que reclamam direito, na rua que não vai longe. Há famílias inteiras que nunca mais acabam na rua que não vai longe. 

Inolvidáveis

 Audrey Tautou

 Keira Knightley

 Marion Cotillard

 Kelly Reilly

Mia Clarke

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Por exemplo (IV)

O café, por exemplo, que Deus o perdoe.

A bicicleta da aldeia

Havia uma bicicleta a viver na praceta da aldeia. A bicicleta era uma bicicleta, a praceta era uma praceta e a aldeia era, garanto-vos, uma aldeia. Até aqui, nada de extraordinário. Havia miúdos que viviam na aldeia e frequentavam a praceta. Com efeito, conheciam a bicicleta. Até aqui, nada de extraordinário. A bicicleta não tinha dono ou, pelo menos, ninguém a havia reclamado como pertence. Com efeito, os miúdos da aldeia montavam a bicicleta por divertimento. Passa-se que, a cada giro, apenas regressava a bicicleta. Os míudos montavam a bicicleta da praceta da aldeia e desapareciam no giro. A bicicleta, essa, continuava a viver na praceta da aldeia à espera de perder miúdos nos giros da idade. Até aqui, nada de extraordinário. 

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Portanto

No Japão, corria o boato que existia um país chamado Japão e cujos habitantes eram, e isto nunca foi uma certeza, japoneses. O boato nasceu no século XV, num evento da corte por altura de Maio, e cedo se prolongou no espaço e no tempo até se tornar uma história veiculada de avós para netos, por altura de histórias. Houve, então, tantos avós, netos e histórias que o Japão e os japoneses foram uma realidade que ninguém via mas toda a gente conhecia. Por altura de hoje, no Japão, não há avós, netos ou histórias. Há apenas o Japão e os japoneses. A história venceu, portanto. 

Por exemplo (III)

A noite, por exemplo, que Deus a perdoe. Vem todos os dias, como as mulheres fáceis.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Um homem livre

Houve, em tempos, um homem que negou a adjectivação e todo o mundo lhe pareceu. Os filhos nunca mais lhe foram distraídos. Os livros nunca mais lhe foram longos. As mulheres nunca mais lhe foram bonitas. A velhice nunca mais lhe foi ameaçadora. Os dentes nunca mais lhe foram amarelos. O sexo nunca mais lhe foi bom. O sexo nunca mais lhe foi mau. O sexo nunca mais lhe foi curto. O descanso nunca mais lhe foi necessário. O carro nunca mais lhe foi rápido. A vida nunca mais lhe foi madrasta. Se o leitor me permite o resumo, houve em tempos um homem que nunca mais, para sempre.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Consciente

Como compromisso, esta será a única intervenção pessoal e consciente deste espaço. Também por isso, as minhas largas e sinceras desculpas.

Por exemplo (II)

A boca, por exemplo, que Deus a perdoe.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Episódios da próxima cama (I)

- Chama-me nomes feios!
- Ester, Joaquina, Lúcia...
- Parvo. Chama-me nomes feios, diz-me coisas porcas enquanto fazemos amor.
- Marialva.
- Estás a falar a sério? É o mais feio que consegues?
- Filha-da-puta!
- Preferia só puta. Insultar a minha mãe não me excita por aí além.
- Puta!
- Agora não vale. Já só consigo pensar na minha mãe. Tens alguma coisa contra a minha mãe?
- Não.
- Jura!
- Juro. Não tenho nada contra a tua mãe.
- Ias para a cama com a minha mãe?
- Não.
- E com a minha irmã?
- Também não.
- Não acredito. De certeza que ias para a cama com a minha irmã.
- Talvez. Se não te importasses, talvez fosse para a cama com a tua irmã.
- Preferia não saber.
- Então está bem.
- Está bem o quê?
- Ia para a cama com a tua irmã sem que tu soubesses.
- Sai de cima de mim.
- Porquê?
- Porquê?! Porque eras capaz de ir para a cama com a minha irmã e não me contar.
- Mas disseste que preferias...
- Preferia que não fosses para a cama com a minha irmã!
- Então não vou. Aliás, nunca fui. Nunca fui para a cama com a tua irmã, ou com a tua mãe, ou com qualquer outra pessoa desde que estou contigo.
- Se fosses, contavas-me?
- Contava.
- Preferia não saber.
- Está bem.
- Está bem o quê?
- Boa noite.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Um castanheiro no areal

Nas primeiras horas de um 20 de Agosto, quem chegou àquela praia viu um castanheiro adulto e firme no areal. Juntaram-se pessoas à sua volta. Ao ritmo que o sol se erguia, mais pessoas se juntavam à sua volta. Dizia-se que veio gente de longe para ver o castanheiro no areal. Os repórteres das televisões assim o adiantavam: - Veio gente de longe para ver o castenheiro no areal. Já de tarde, e com uma multidão que enchia a praia só para ver o castanheiro no areal, a árvore largou um ouriço. Demorou, e os repórteres também o disseram porque houve quem contasse, 7 segundos a percorrer o ar desde o topo do castanheiro à areia. Foram 7 segundos porque a cada segundo de queda tombava uma pessoa no areal. No final, estavam sete pessoas e um ouriço caídos. Quem não tombou, voltou a casa e no dia seguinte já não encontrou um castanheiro no areal. O Outono chegou pouco depois.

Por exemplo (I)

Os elevadores, por exemplo, que Deus os perdoe.

Como o pai

Tinha olhos castanhos e o desencanto, como o pai. Da mãe, herdara cinco mil euros. Todos os dias enchia uma mala com roupa para uma semana. Quando deixou de ter roupa, enchia as malas com água. Quando deixou de ter malas, enchia garrafas com água para uma semana. Quando deixou de ter água, enchia garrafas com terra. Quando deixou de ter garrafas, comia terra para uma semana. Quando deixou de ter terra, comia legumes. Houve um dia em que lhe nasceu uma alface entre o peito e a barriga. Consta que morreu pouco tempo depois e, felizmente, não deixou nada por encher. 

43 minutos

Sentava-se todos os dias, durante 43 minutos, numa repartição das finanças à espera que alguma das finanças de algum dos homens fosse por si repartida.

Naquele tempo

Era um comboio que ligava duas cidades. Tinha seis carruagens, por vezes cinco ou menos, por vezes sete ou mais. Não tinha, a bem da verdade, um número exacto de carruagens e não era, afinal, um comboio. Era um corvo que ligava duas cidades. Cidades distantes onde ninguém vivia. Não eram, a bem da verdade, duas cidades. Eram duas latas de atum. Ou era uma lata de atum, apenas. Uma lata de atum e um corvo. Era uma lata de atum e um corvo naquele tempo.