segunda-feira, 10 de outubro de 2011

O pombo e a andorinha

Um pombo e uma andorinha. Um pombo e uma andorinha: seriam os protagonistas da mais improvável história de amor, não fossem, na realidade, os protagonistas de uma bela e - como verá o leitor em breve - trágica história de amor. Era um pombo com doenças de pombo. Era uma andorinha com voos de andorinha. Conheceram-se por acaso, entre bebidas e amigos em comum. A andorinha perdera o mar fazia meses. O pombo perdera uma perna de pombo fazia meses. Ninguém sabe quanto tempo duram os pombos ou as andorinhas. Bem, na verdade, há quem saiba; mas prefiramos acreditar que não se conhece a duração da vida dos pombos e das andorinhas. O pombo gostava das batatas fritas perdidas nos pacotes de batatas fritas que sujavam a praça. A andorinha gostava de filosofia. O mundo gosta de pombos e andorinhas, mas o mundo nunca estará preparado para conhecer uma história de amor entre um pombo e uma andorinha. Mesmo assim, um dia, começou uma história de amor entre um pombo e uma andorinha. O mundo teve de terminar nesse exacto dia. Foi uma pena, porque o mundo acabaria por gostar da história e a história acabaria por se adaptar ao mundo. Mas acreditemos na força do amor e acreditemos que a história precede o mundo. A bem da verdade, e mesmo sem mundo, o pombo e a andorinha amaram-se para lá do mundo, no céu. Não, não é uma metáfora. Amaram-se no céu, voando constantemente, sem chão onde poisar, aguentando com as asas o seu amor. Infelizmente, os pombos e as andorinhas são espécies frágeis, como os homens ou os leões, e nem todo o amor do céu lhes deu força nas asas que aguentasse o tempo. Cansaram-se das asas e cansou-se o amor. Como o amor do mundo. Como o amor dos homens ou dos leões. Como o amor. 

domingo, 27 de março de 2011

O Douro já o sabe

O que é interessante é que a Primavera também é o céu acizentado, a chuva fiél e a estrada molhada, não concordas? Íamos os dois sob o céu acizentado, rasgando a chuva fiél sobre a estrada molhada e tu com vontade de urinar e eu com vontade de urinar por solidariedade, primeiro, e por desespero, depois. Mas era Domingo, como da outra vez, e estávamos em passeio como todos ao Domingo, tu de fato de treino, eu de ganga, a cantar a playlist do rádio e a conspirar as vidas dos outros, como todos ao Domingo; por isso era vontade de mijar, ai que vontade de mijar, mijar o mundo todo. Mijámos na praia. Eu de pila em riste ao rio. Tu de cócaras de gozo ao rio. E o rio a beber o nosso mijo e a crescer crescer crescer para nós, cada vez mais largo, cada vez mais longo, mais nacional, continental, universal. O meu mijo e o teu mijo no rio, a fundirem-se tranquilos antes das calças para cima e a viagem de regresso, não concordas?

segunda-feira, 21 de março de 2011

Um suspiro muito grande

Há um dia muito bonito a lançar todas as semanas. Há, inclusivé, um poema muito bonito sobre esse dia. Chama-se "Domingo" e começa com um suspiro, como começam todas as semanas. Muitas pessoas nasceram no Domingo e muitas pessoas morreram no Domingo. Entre todas essas, haverá algumas que nasceram e morreram no Domingo - não o mesmo Domingo, um Domingo diferente, qualquer, mas um Domingo sempre bonito a lançar a semana. Ao Domingo há eucaristias dentro das igrejas e cortejos de carros impecáveis a velocidades medidas. Há futebol nos rádios e golos prolongados nas vozes dos relatores, há ondas de mar que batem nas costas dos casado e coisas. Ao Domingo há um sorriso no sol e nuvens de azul, como o desenho de uma criança.

segunda-feira, 14 de março de 2011

O bem e o mal.

Discutíamos a bondade e a maldade no Homem. Ou girávamos em Rousseau num cortejo de filosofia gratuita, como quiseres. Que era bom, que era mau. Que nasce bom, que nasce mau. Que se mede a maldade, que é tudo igual, que é tudo diferente. No fim, algumas coisas: tu, meu amor, continuarás com a mesma ideia. Prevalecerá a bondade e a maldade dentro de ti, como em todos, e o coração se distinguirá, qualificando aquilo que és e que os outros são para ti. Eu, meu amor, continuarei com a mesma ideia. Prevalecerá a bondade e a maldade dentro de mim, como em todos, e só no meu pensamento, como no de todos, se revelarão autências e fiéis. Numa coisa, pelo menos, e ninguém o negará, estamos de acordo. Que a bondade e a maldade quando deitadas, as minhas e as tuas, que a bondade e a maldade quando deitadas, dizia eu, sob os lençois de Inverno numa qualquer cama do mundo, trocando hálitos entre conversas ao ritmo dos mimos nas pernas, inventado posições de encaixe e beijos novos, a bondade e a maldade, meu amor, não interessam um caralho.  

sexta-feira, 11 de março de 2011

A mãe

Havia de visitar a mãe. Havia tempo que não visitava a mãe. Lembrava-se com dificuldade, aliás, da cara da mãe. Era uma cara, se não lhe falhava a memória, bem curiosa. Tinha tatuagens de fogo nas bochechas e dentição incisiva dentro da boca. Quando furiosa, aqueciam as bochechas e cresciam os dentes e rompiam a boca. O cabelo, lá em cima, não escorria nem dançava. Era teso, seco e baço. Era, antes, uma malha de rede que lhe tapava a careca e que despia todas as noites. Como despiria a roupa se tivesse corpo. Mas a mãe não tinha corpo, era só cara com aquilo que disse, se bem me entendem. Era mais ou menos assim a cara da mãe e mãe em geral. Havia de visitar a mãe, dizia eu antes de mais. Mas haveria sempre, graças a Deus, algo mais premente a fazer antes disso.